quinta-feira, 10 de julho de 2008

Mário Bertagnolli

Mário José Siqueira Bertagnolli, 37 anos, desempregado, vive de economias e bicos que faz para uma pequena editora de um amigo. Separado, mora sozinho num apartamento de um quarto na Bela Vista.

Um dos consolos para esses tempos difíceis é voltar ao bairro onde nasceu. Na verdade, meio consolo. A casa onde morava não existe mais, a venda do seu Estêvão é agora um depósito de móveis velhos, as faixas de pedestre apareceram onde não deviam, os carros dói ouvi-los passando em grande volume e pouca velocidade. Só a igreja de Santa Luzia continua lá, incólume, a não ser por umas reformas na ala da capela e pela árvore que ficava ao lado da passagem para a sacristia não existir mais. Ali as melhores lembranças de sua avó italiana, beata, que o levava para rezar todos os dias; ali ainda o silêncio frio e atmosférico daqueles anos; ali, o tempo parado, ele conseguia chorar a tristeza profunda de sua separação.
Dizer qualquer coisa da vida pregressa de sucesso, da extrema inteligência, da generosidade, do caráter do Mário é não lhe fazer justiça. Ele mesmo se define, tomando palavras de um dos seus romances preferidos, como um homem muito respeitável, de quem todos falam bem, mas de quem ninguém nunca se lembra. Portanto, em respeito a ele, deixo as glórias e as felicidades do passado para contar a dor do presente. Ainda que, para ser mesmo justo, a dor do presente é tão referendada pelo passado que, inevitavelmente, no tugúrio – como ele gosta de se referir romanescamente a seu apartamento – só, amargurado, em meio aos livros sempre querendo dizer mais que suas páginas, resta-lhe pensar no passado.

Mário conhecera Beatriz na faculdade. Os dois fizeram Letras, embora tivessem metas completamente diferentes. Ele só gostava de ler e aprender línguas, era sua secunda faculdade, já tinha formação em Arquitetura, mas construir, para ele, só era interessante do ponto de vista humano. Ela queria dar aula de inglês, embora tivesse muito pouco talento para a coisa. Começaram a namorar dois anos depois de se conhecerem. Ela havia acabado de sair de um namoro e ele era o amigo mais próximo. Entre a apresentação e o primeiro beijo não houve nenhuma sedução além de um almoço pago por ele num restaurante chique e um elogio por parte dela da erudição e da generosidade dele. Foi assim, burocrático e complementar o relacionamento deles, bem de acordo com a sede de controle de Mário.
Dizer se era feliz? Hoje ele vê que sim, tem plena e absoluta certeza. E durante a primeira separação, quando sua prima psicóloga lhe disse que só estava valorizando e superdimensionando uma perda narcísica, ele se acabou, pensando que ainda era aquele moleque que se debatia porque a mãe não podia lhe dar o carrinho de controle remoto e, finalmente, quando o teve, viu que nem era tão bom assim. A sina humana, ele gostava de pensar. Como saber se Beatriz valia tudo aquilo mesmo se agora nem um remoto controle ele podia ter sobre ela? O carrinho-Beatriz que primeiro veio e depois se retirou, invertendo a lógica da sua infância.
Ficaram casados por quase cinco anos. Ela se dizia casada, ele não gostava, afinal, nunca houve cerimônia nenhuma, eles eram um casal, mas não casados. Havia uma harmonia muito grande entre o silêncio dele e a extrema vivacidade dela em contar absolutamente tudo que se passara no seu dia. Era uma das coisas que ele adorava, os olhos dela sempre se acendiam com coisas simples, banais, às vezes ele desligava a atenção do que ela dizia apenas para prestar atenção no movimento daqueles olhos, no canto da boca que mais dizia calado, nas mãos que ele sempre amara – a única coisa de Beatriz que o impressionou desde o primeiro instante, mesmo quando ela ainda namorava o Tadeu.
Achava-a bela? Não, nunca achou. Nem feia. Reprimia em si o fato de a beleza contar para um relacionamento. Fazia uma comparação com a arquitetura, onde a beleza exterior das linhas muitas vezes sacrifica a interior, ou a eficiência, funções da existência de uma obra arquitetônica, mas jamais as aniquila, ao passo que no caso dele com as mulheres, a beleza interior, a eficiência, a placidez que elas podiam lhe oferecer era o essencial, a despeito de uma falta de beleza ou brilho, desde que esta não seja completamente subjugada pelos anteriores. Assim ele formulava, assim ele regrava. Mário era cheio de comparações, metáforas, hipérboles e justezas, e foi acertadamente que alocou Beatriz numa delas, como numa lacuna da sua vida, onde tudo devia ser cuidadosamente moldado para que a paz finalmente reinasse, a paz com que tanto sonhava.
A paz, sim. Mário nunca a teve. Até hoje ele não entende o que é isso que procurou a vida inteira. Fato é que Beatriz, por ser uma belíssima hipérbole, às vezes, uma metonímia útil, outras, acabou sobrando de seu vocabulário aplicado, o duro e realista da linguagem dos engenheiros, melhor dizendo, das engenheiras.

Mário nunca traiu Beatriz, foi ela quem o traiu.
Essa excrescência da vida, esse relevo dos planos, essa bravata do caminho não-tomado foi o que o excitou e o destruiu, e destrói ainda agora. Júlia era uma engenheira que vinha de outro estado. Vestia-se bem, tinha cabelos lisos e loiros, usava batom, andava como que desfilando, ela era um compêndio de todas as coisas que Mário sempre abominara. No entanto, ao abrir a boca e falar com ele, apenas semeou-se e encanto da sereia, aquela voz terrível, melodiosa, alongada, algo infantil e sussurrada, contrastava com a postura séria, compenetrada dos croquis e esboços. Sem que se desse conta, Mário começou prestando atenção nos sapatos dela, depois na canela, no dia seguinte já achava aquele o único andar possível numa mulher de verdade. Não chegava a se culpar por isso, amava Beatriz e sabia que ela era a mulher da sua vida, mas já as histórias dela perdiam o interesse, os olhos de Beatriz eram menores do que os de Júlia, as mãos mais belas, mas exageradas no gesto, as pernas, definitivamente, menos longilíneas e elegantes – Beatriz não tinha tornozelos. Quando percebeu, Júlia estava no seu café-da-manhã, louca para que ele chegasse logo ao escritório e pudessem concluir a ala esquerda da obra. Foi nesse dia que a Florbela Espanca entrou e deu-se a derrocada oficial.
Almoçaram juntos, porque o prazo chegava e eles tinham pouco tempo para resolver os últimos detalhes. Ela o surpreendeu falando num tom insinuante e lamentoso sobre como era difícil viver em São Paulo, sendo de outro estado. Mário até percebeu que ela forçava o sotaque enquanto falava, mas devia ser apenas uma impressão. Júlia usou de uma intimidade e de uma cumplicidade inéditas, num almoço onde só deveriam discutir os interesses do escritório, como resistir àquilo? E ele não queria, derrubada a última barreira, em menos de uma hora toda a vida deles tinha sido exposta. Muitas coisas, interessantes e fúteis, de Júlia fizeram com que Mário esquecesse de todo o resto, do trabalho, da literatura, de Beatriz, de sua mãe, da viagem para Europa, mas falar delas é falar de Júlia, e ela pouco interessa. Interessa a Florbela, que Mário sempre odiou, com a cumplicidade de Beatriz, inclusive. Mas esse era um dia de inaugurações e reformas, conceitos tão caros a arquitetos e engenheiros, assim que o talento vocal de Júlia e uma certa propensão à dramaticidade que o acompanhava mostraram o fio de sua lâmina quando ela declamou para ele um daqueles sonetos mais piegas da portuguesa infausta. Mário, em silêncio, agradeceu a todos os santos por estar sentado, pois sua perna tremia mais do que os ciprestes do poema. Sorriu, sem-graça, viu que mal tinha tocado na comida e ficou mais sem-graça ainda. Ela, sem nenhuma cerimônia, como se qualquer almoço de sua vida fosse como aquele, lentamente olhou a hora e viu que estavam atrasados para a reunião. Derrocada oficial, sim, porque desde aquele instante, não havia mais reunião no universo que desunisse seu pensamento dela, a dama exótica e desamparada, que lhe cantava as mais belas melodias improvisadas do universo e que nenhum ser humano a não ser ele poderia ter, em lugar nenhum, em tempo nenhum.
Beatriz desconfiou. Mário sempre foi sujeito honesto, cordato e não tinha o sangue frio necessário para esconder a história. Também não contou, só desconversava, culpava o trabalho. Por essa época, o projeto já tinha sido concluído e ele não via mais Júlia. Começaram a trocar e-mails. Ele meio que confessava seus sentimentos, mas ela, num tom compatível ao da sua voz, desconversava, soltando alguns mimos, algumas extravagâncias, como de costume. O tom era pessoal, obviamente, mas embora ele estivesse a um passo de se jogar aos pés dela, ela sempre mantinha uma distância prudente e impassível. Depois de alguns meses assim, Júlia finalmente cedeu e disse que sentia a falta dele, que um ou outro dia que ele não escrevesse não era um dia como os outros, e resolveu aceitar um dos convites para que se encontrassem. Palavras apenas vagas e ambíguas soaram como uma declaração de amor para ele.
Não, Mário nunca traiu Beatriz, foi ela quem o traiu.

Júlia sabia de Beatriz, mas nunca falava nela. No entanto, antes de aceitar se encontrar com Mário, naquele típico orgulho misturado com curiosidade das mulheres, perguntou, por telefone, o que a sua esposa achava daquilo. Mário odiava sarcasmo e, pego de surpresa e indefeso, disse que as coisas andavam mal no casamento, e que, praticamente, já estavam separados. Disse isso e, enquanto dizia, ouviu com um espanto enorme sua própria sentença proferida. Talvez soubesse o quanto de profecia uma mentira nesses termos se veste. E foi, e disse.
Uma semana depois, de fato, separavam-se, três dias antes do preconizado encontro, que nunca aconteceu. Beatriz, num descuido dele, leu os e-mails. Indagado e afrontado, não negou, mas fez aquilo que todo homem, covarde, faria, na hora, disse que a amava, que aquilo tudo era só uma fantasia dele, que ela era a mulher da sua vida. Muita coisa feia e fétida foi dita naquela noite, ofensas de ambas as partes. Beatriz se foi, chorando. Mário ficou, inerte. Não teve notícias dela por duas semanas. Numa inversão monstruosa, resolveu colocar toda a culpa em Júlia e, desde então, nunca mais se falaram.
Frustrado consigo mesmo e sabendo que não poderia continuar daquela forma, tirou uns dias de férias. Como não conseguia tirar aquilo da cabeça, escreveu duas cartas enormes, onde resolveu contar tudo para Beatriz. Depois de duas semanas, como dito, ela resolveu ligar para ele. Pediram desculpas, até riram um pouco. No dia seguinte, encontraram-se, ela estava linda, ele se sentia fraco, abatido. Apenas sugeriu que ela voltasse, ela voltou.
Aqueles foram os melhores dias, ele a tratava muito bem, retomou dobradamente o prazer de sua companhia. Ela não contava as coisas como antes, mas ainda contava, e talvez fosse tudo insegurança da cabeça dele achar que era diferente. Iam ao cinema, liam juntos, o trabalho voltou, ele produzia, começou a ler A montanha mágica, uma vergonhosa lacuna de décadas nas suas leituras.
Mais ou menos três meses depois que reataram, numa noite quente de junho, tendo tomado seu café após o jantar preparado por ela, Mário ouviu de Beatriz que estava apaixonada e, a julgar pela sobriedade do seu semblante, e, como de resto, nunca fora afeita a piadas, não era por ele, como por instantes o desusado da situação o fez crer. Era um tal de Jean-Luc, belga, que ela tinha conhecido numa das festas da Natália, sua amiga de faculdade, naquelas duas semanas de separação. Mário não sabia o que dizer nem o que fazer, disse para que ela refletisse com bastante calma sobre o que estava falando, que analisasse se era isso mesmo, que, agora que estavam juntos novamente, era natural que ela se sentisse insegura, depois de tudo que aconteceu. Ela consentiu e disse a ele que, mesmo não tendo feito nada com o outro, não se sentiria bem de não contar o que se passava com ela, pois a briga que gerou a separação tinha origem na omissão e dissimulação dele. Um pouco mais sossegado, ele pensou até que era invenção de Beatriz, apenas para devolver na mesma moeda o dano que lhe havia causado.
Os dias que se seguiram se alavancavam. Ela distante, ele desconfiado. Começou a investigar cada palavra dela, que já não eram muitas, os telefonemas, o perfume, a hora que chegava em casa, mas, ainda assim, temia tocar no assunto novamente. Ela já quase não olhava para ele e dissimulava as palavras educadas de quem se convive. Quando estava num ponto insuportável, Mário tomou a decisão de perguntar o que estava acontecendo, que situação era aquela, afinal. Mas antes que pudesse tomar essa iniciativa, no entanto, Beatriz veio e lhe disse que estava tudo terminado; seca e resoluta, como antes. Naquele momento ele entendeu que ela já “estava” com o belga e que, muito provavelmente, como ela se despedia, naquele mesmo instante o cara já devia estar esperando por ela, na rua. O verbo foi se tornando ácido até que, numa reviravolta desesperada, deu lugar a cenas de humilhação explícita, ele disse que a perdoava, que não o deixasse, que ele não sabia viver sem ela, ao que ela repetia e incitava, compreensiva, porém sem se inclinar, que era para ele se compor, que o casamento já não existia há muito, que ele não iria morrer sem ela, mas que ela não queria mais morrer com ele. Nessa hora, Mário pensou nos tornozelos de Júlia e se deixou prostrar no chão do apartamento escuro.

Nos meses seguintes, ele perdeu o emprego, perdeu o sono, perdeu a fome. Sua mãe foi cuidar dele e conseguiu, a duras penas, fazer com que tivesse um pouco de ânimo.
Hoje, um pouco melhor, faz traduções para um grande amigo, dono de uma editora de livros esotéricos e de um coração tão generoso quanto o dele. Entrega-as pessoalmente, para poder, entre outras coisas, visitar a rua onde morava, quando criança. As traduções não lhe interessam nem aborrecem, são mera ocupação. Como gosta de ver sentido em tudo, pensa que é o seu destino ser tradutor e não escritor, transformar da melhor maneira possível, em vez de criar. Vê alguma graça nisso e já fez alguns projetos de filantropia, para quando se sentir animado novamente. Dinheiro não falta, ele sempre soube economizar, e, na verdade, não gasta muito, ficando em casa o dia inteiro, comendo pouco, fazendo nada. Também está relendo os livros que leu antes da faculdade, está na metade do Dom Casmurro, pretende terminar ainda hoje, mais tarde.

Neste preciso instante, Mário está sentado na poltrona, olhando para a janela. Não, ele não está deprimido, só ouve atentamente o silêncio de Beatriz, que dura até agora.

Nenhum comentário: