quarta-feira, 30 de julho de 2008

Nothing will die

Eu me lembro, numa madrugada perdida, mais ou menos como esta, de ter assistido a The Elephant Man, se não me engano na Bandeirantes. Isso deve ter uns 15 ou 20 anos, na época em que a inocência e a esperança ainda tinham as mãos atadas, e que nossas noites insones eram capazes de suportar tudo, até mesmo uma obra-prima, mesmo que dublada.
Lembro-me, também, que o filme era estranho, estranhíssimo e, talvez – disso já não me lembro tanto – eu esperasse que fosse mais um daqueles de terror, do tipo Nasce um Monstro, que era orgulho de tantos rapazolas como eu, naqueles dias.
De início, a deformidade do protagonista causou repulsa, mas logo depois se transformou em compaixão, qualidade humana das mais requeridas numa obra de arte. O filme me deixou arrasado tamanho impacto emocional ali contido e, certamente, mesmo para um pré-adolescente como eu, trazia muitos ecos de experiências pessoais e histórias ouvidas na infância.
Hoje, vi novamente, acredito que pela terceira vez. Sem dúvida, a primeira depois de saber quem é David Lynch e conhecer seus filmes. Continua sendo uma experiência de mudar a vida, nem que seja para você tomar vergonha na cara e procurar ver os outros filmes dele, para começo de conversa, afora isso, permanece um dos filmes mais terríveis, uma das histórias mais tristes que o cinema já contou. Como disse o próprio John Hurt, protagonista, quem não se sente tocado pela história não merece ser qualificado como ser humano. Pesa, sem dúvida, o fato de que o homem elefante realmente existiu, é um dos ícones da era vitoriana e, de certo modo, um dos símbolos, também, de como o homem moderno, especialmente o do fin-de-siècle, diferenciou-se daquele anterior, no que tange especialmente a isso, o espetacular, o inaudito.

John Merrick sofre de uma deformidade que faz com que parte do seu corpo seja grotescamente desproporcional, especialmente a cabeça. Sua vida é se mostrar como aberração num freak show, onde é explorado e abusado por uma espécie de “dono”. Até que um dia, um cirurgião renomado, Dr. Treves, resolve examiná-lo e desenvolve uma simpatia por ele. As voltas e reviravoltas romanescas do filme mostram Merrick como um sujeito normal, gentil, amável e educado, apenas assustado e traumatizado com o tratamento rude e truculento que recebera durante toda a vida, mostram também sua sina de ser explorado, até mesmo, inicialmente, por Treves, ora como uma aberração circense ora como atração puramente humanista e morbidamente curiosa. Explorado até o fim, doente, ele encontra consolo na amizade que faz com Dr. Treves, uma atriz, Fanny Kembles, e as enfermeiras do hospital onde passa a morar, bem como na simpatia geral das pessoas, familiarizadas com sua história nos jornais – sim, a imprensa inglesa tem tradição nesse tipo de coisa.
O que David Lynch enquanto David Lynch conta é a história de uma alma atormentada dentro de um corpo deformado, querendo ser libertada da escuridão, angustiada com a beleza, a vivacidade que ia dentro e aterrorizada com a própria aparência, via de regra espelho do horror alheio e espelho de si mesmo. John Merrick só queria ser um homem como qualquer outro, poder elogiar uma mulher bonita, vestir-se bem, ser cordial, ter amigos, poder se expressar, mas acabou tendo que se conformar com a mais abjeta visão de si, fruto das deformidades do seu corpo e, por ser tratado e exibido como animal, acabou reprimindo até mesmo o ato mais humano que podia salvá-lo, o da fala e da comunicação.
Ao ser reintegrado pelo Dr. Treves à convivência humana, todas aquelas quimeras ressurgem – para Lynch, a palavra melhor é emergem – e ele pode novamente se imaginar como um ser humano passível de ser amado. E, de fato, no momento mais belo do filme, ele afirma que sua vida é repleta porque sabe que é amado. A ironia mais do que óbvia é que essa, embora uma verdade universal, que nos assemelha a nosso vizinho mais distante digno de se chamar um homem, é, no entanto, tão difícil de ser enxergada. A necessidade mais básica de John Merrick é para ele simples e cheia de sentido pelo fato de que o trato normal para com uma pessoa estigmatizada como ele é o horror, a repulsa, a reação normal – mais uma vez em suas próprias palavras – de temor frente o que não pode ser compreendido. É porque tudo sempre foi tão negro para ele que o branco é nítido, compreensivo e lindo, como talvez nunca consigamos entender, por mais que nos esforcemos. Curiosa condição humana, curiosos e misteriosos desígnios que constituem a vida.
The Elephant Man é tanto sobre o homem elefante como sobre nós, os espectadores de seu drama. Porque assim como ele sugere repulsa por sua deformidade, também exerce um fascínio que nos faz pagar para vê-lo, que incita nossa curiosidade, aumentada pelo exímio cuidado de Lynch de insinuá-lo apenas, no início do filme, como que a dizer que nós também somos aqueles assustados pagantes do show de horrores, mesmo que sob a perspectiva médica ou da de meros amantes de uma boa história. Esses os ingredientes: mistério, imaginação e a comoção do estranho que nos repele, que nos faz gostar mais de nós mesmos, de nos sentirmos ingratos por tanta indelicadeza de espírito, de pensar como Deus pôde ter concebido tanto sofrimento numa sua criatura etc. Esse jogo dialético de se sentir ao mesmo tempo reconhecido ali naquela figura disforme, como um ser humano, de ter compaixão, simpatia por ele, e, ao mesmo tempo, a repulsa como que a um animal querendo ser humano, repulsa física, quando não também inculcadamente moral. Para isso, basta lembrar que durante muito tempo os doentes e aleijados eram tratados como espólio da ira divina, as doenças ou deformidades nada mais eram que estigmas de injúria moral ou marcas expiatórias de todo um povo. Como exemplo, basta citar Ricardo III, cuja deformidade física é a todo momento relevada pela deformidade de caráter, moral, na obra de Shakespeare. A caridade, inspirada por esse dúbio sentimento de temor e atração pela desgraça alheia, é bem diferente da santidade, que se aproxima do amor; o qual nós, sejamos quem formos, podemos nos considerar sortudos se tivermos de uma meia-dúzia de pessoas durante toda a vida. Amor é algo que perfura, transgride, reage, põe do avesso. Não é do amor suportar, tolerar, dar, querer, ele se contém em si e para si, e só ama. Uma pessoa tão pouco “amável” como John Merrick é capaz de perceber isso naturalmente, e talvez seja esse o grande presente divino que ele teve e que nos dá hoje, mesmo que por meio de uma obra de ficção.
Porque o verdadeiro John Merrick não era nada ficcional, era mesmo humano e tinha todas as contradições que se espera encontrar em qualquer ser entre o céu e a terra. Juntou uma boa soma de dinheiro com suas exibições. Não há provas de que tenha sido explorado ou agredido na Inglaterra. Só não conseguia falar por um defeito na boca que o impedia de articular palavra. Foi ele que procurou a ajuda do Dr. Treves. Queria morar num hospital de pessoas cegas para conhecer uma moça que não se apavorasse com sua aparência. Enfim, era muito menos animal do que no filme, muito mais próximo de uma realidade como entendemos e, curiosamente, como se pode constatar em fotos reais suas, mais deformado do que na ficção. Assim acontece também com o verdadeiro espectador, que vai continuar se comovendo com a história de John Merrick mas não dando a mínima – ou só dando a mínima, que para ele é mais do que suficiente, mas no final das contas é a mesma coisa – para qualquer aflição que lhe chegue. Não creio que nenhum dos dois seja de se culpar, e é apenas natural que as coisas sejam assim. Querer que sejam diferentes é ao mesmo tempo ingenuidade e falsa modéstia.
Gosto muito de pensar que o sentido inteiro do filme, como de tudo que existe, são as últimas palavras da mãe dele, de que nada morrerá nunca. As estrelas e o tema fazem lembrar, entre outros favoritos, do final de um filme de Lynch mais recente, The Straight Story. As influências orientais são visíveis em ambos momentos ao igualar a vida ao universo, e a existência, eterna, a um simples ato que nossos limitados vocábulos reduzem a esse termo tão desgastado que é o amor.

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