domingo, 6 de julho de 2008

Analogias

hlör u fang axaxaxas mlö

Parece que todo mundo já leu Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, assim como todo mundo que conhece tem de, obrigatoriamente, gostar de Borges. Essa sempre foi minha impressão. E como fujo de toda unanimidade, fiz a maior covardia possível, não li para não ter que concordar nem discordar da maioria.
Isso até dois dias atrás, quando, para variar, o livro se atirou em mim, pedindo para ser lido. Li.
Como todo mundo conhece o bagulho, não vou contar a historinha (seria prepotência com os meus cerca de dois leitores). Só digo o ponto pacífico: é uma fábula, uma utopia berkeleyana, uma invectiva de Borges contra o idealismo soi-disant. Para isso, ele usa a fórmula conhecida da hipérbole e enche de detalhes e referências para mostrar para todo mundo como é erudito, sem ser exatamente pernóstico.
Eu que não tenho capacidade para fazer um estudo sobre as múltiplas faces de Tlön e suas conseqüências, detenho-me naquilo que mais me interessa: a relação deles com o tempo.

Num mundo como Tlön, onde não há concepção de matéria, não há substantivos, nomes, delineações de objeto e, ao mesmo tempo, não há solipsismo, a saída é não conceber também o sujeito, mas um panteísmo idealista, mais ou menos à moda do inconsciente coletivo junguiano, onde toda a humanidade consiste em um só sujeito, dividido em todas as particularidades quantas possíveis no universo de indivíduos. Curioso dizer que a psicologia se torna a ciência por excelência nesse mundo onde qualquer ciência – como as entendemos na Terra – é impossível, uma vez que os fatos, bem como os estados mentais, não são jamais concebidos como uma cadeia seqüencial ou causal, impossibilitando, portanto, qualquer encadeamento lógico de proposições.
Uma vez que a concepção de realidade é incapaz de delinear a matéria, o referente, juntamente, cai totalmente por terra. O que se vê é que a todo momento há uma espécie de deslumbramento do sujeito frente à realidade. Inevitável: se o homem não delineia o espaço, delineia o tempo. Esse parece ser o grande salto e a grande ousadia da utopia borgiana, embora nunca explicitada. O fato de ser uma utopia dentro de um contexto real, de ser um mundo criado dentro de um outro inventado, aquele da ficção literária – e aí cabem as metáforas do espelho, da enciclopédia, do atlas – o redime da responsabilidade que, no final das contas, não caberia num mundo onde a lógica foi abandonada, onde somente a coerência e seus corolários são obsessivamente mantidos.
O que Borges não diz é que o homem não é divino em todos seus aspectos; é extremamente limitado e mesmo os melhores só conseguem “transcender” essa limitação em experiências completamente particulares. A ciência, no sentido que o termo ganhou a partir da Idade Moderna, é limitada, é material. Tentar fugir disso é meio que como girar o caleidoscópio. O negar o materialismo de Tlön é fazer poesia para os terráqueos. Por isso, para nós, a língua deles é extremamente inventiva e poética no seu afã de ser descritiva nas qualidades e não nas quantidades. A topografia deles de “torres de sangue” nos soa, na pior das hipóteses, como versos mal-feitos, querendo superar a realidade do que percebemos, como terráqueos. Por outro lado, quando se põem a fazer ciência, transformam tudo em psicologia, e é dessa forma que os metafísicos preferem o assombro à verdade, a literatura fantástica a uma busca por uma realidade imanente do mundo em que vivem. Aí, Borges se auto-refere: a única função possível da literatura “séria”, num mundo onde não há referentes nem história, é criar um outro mundo, como ele mesmo faz, onde, quem sabe até, a Terra seja recontada, para citar um outro tema caro a sua literatura. Onde os pensadores de Tlön criam filosofias, nada mais estão fazendo que criar sistemas, onde pensam rechaçar a ciência, aí sim, perigosa e paradoxalmente, fazem filosofia. Como é o caso do materialismo, onde a questão das moedas achadas relembram os clássicos problemas gregos, berço da lógica e da filosofia terráqueas.
Mas aí vem a questão do tempo, na minha opinião, a mais fascinante do conto. Pensar numa sociedade onde os fatos não existem porque não podem perdurar no tempo é algo simplesmente fantástico. Convenientemente, o idealismo radical desprende qualquer realidade objetiva do intelecto e transforma a realidade perceptível – a mediação, por assim dizer – em único dado palpável. Na clássica metáfora, seria como se carregássemos uma vela epistemológica diante de nós e qualquer penumbra ou obscuridade fossem isso que aparentam ser, reinos impenetráveis; um sensorialismo que nega o materialismo e escapa da heresia da Mente ao igualá-la a Deus. Levar essa idéia absurda às últimas conseqüências é negar totalmente o delineamento da matéria, da identidade, portanto, negar também o movimento, única prova de “existência” do tempo. Ao homem só resta ver o mundo como uma série de quadros onde cada um deles nada tem que ver com o outro, por mais próximos que estejam. Fazendo dois paralelos com o mundo de hoje, a concepção de mundo terráquea é analógica, a de Tlön, digital. Também, do ponto de vista perceptivo, um terráqueo sabe bem, embora não perceba, a diferença entre o que vê na vida real e o que vê numa lanterna mágica ou no cinema, onde os quadros se aceleram a ponto de criar a ilusão de movimento, o homem de Tlön, pelo contrário, vive o cinema o tempo todo, e só consegue poeticamente imaginar um mundo onde outra coisa seja possível (está provado pela “ciência” de lá que esse mundo é impossível de ser criado de fato). Na Terra, o homem tenta explicar a incongruência de um acontecimento através da mágica, de milagres, déjà vu’s, em Tlön, é perfeitamente possível – e até provável – que um dos quadros da realidade se distorça, nem que seja somente para verificar que assim é a realidade.
Verificando a limitação que há entre a língua e o mundo, podemos ser um pouco mais tolerantes com um mundo análogo, como o proposto por Borges. No final das contas, trata-se de um problema epistemológico, de deficiência da percepção humana, de uma escolha, em menor ou maior grau, de abstrações para sua incapacidade de chegar na questão ela mesma. Tanto a questão da continuidade do tempo como a da continuidade do espaço são reduções de questões divinas, mistérios a serem diminuídos ou elevados por meio de abstrações simbólicas. Ficar revolvendo o escopo disso é como sambar teimosamente uma valsa. O prático é reduzir, transformando a matéria em átomos, o tempo em segundos. Mas ambas reduções são altamente frustrantes e insatisfatórias na nossa experiência humana. Na verdade, na verdade mesmo, somente a psicologia tlöniana, que relativiza a capacidade tanto do tempo como do espaço, é capaz de amainar um pouco nossas angústias existenciais. Seria interessante saber como eles entendem o infinito. Em relação ao tempo, existe até a hipótese de que ele não exista, um pouco exagerado no caso de Tlön, mas bastante adequado. Pensando como um deles, nossa relação de tempo só é seqüencial por razões práticas. No limite, o sujeito sempre muda: o desgaste infinitesimal de uma moeda – para usar como exemplo um objeto do próprio conto – ao longo de um minuto, que seja, faz com que ela não seja uma identidade, conquanto possa cair no engodo da consciência cartesiana.
Permito-me ainda fazer um comentário moral. Um homem que sabe que não tem identidade com seu futuro ou passado está pronto a fazer tudo sem a responsabilidade do ato. Assim, também, toda relação humana tende a ser vazia, pois se pode descartar – e de certo modo até deve-se, nessa inversão moral – aquele que não é interessante agora porque só o presente, e não a experiência desse presente, cabe em nossas vidas. A armadilha é clara e reveladora, o idealismo puro não deixa de ser um materialismo diabólico, na medida em que nega até a si mesmo. A pureza das idéias se limita no momento mesmo em que são só idéias e não reflexões. A meu ver, aí está implícita a invectiva de Borges quanto ao nosso mundo estar se tornando, sorrateiramente, Tlön. Algo perverso, diabólico, travestido de grandes respostas humanas a questões meramente divinas, transcendentes.
Há ainda a questão muito interessante dos hrönir, mas paro por aqui em respeito aos meus dois leitores que a essas alturas já estão pensando seriamente se alguma vez voltarão.
Termino dizendo que Borges faz, sim, grande literatura. É claro que não precisa de um José Manuel como eu para dizê-lo, portanto, digo mais como uma confissão de admiração. Usando o ideal artístico de Pound, ele gera o máximo de significado no menor espaço possível, condensação de possibilidades de leitura, poesia do mais alto grau. Borges é um daqueles que dá vontade de verificar todas as referências, porque elas, na verdade, são convergências e não distrações. E Tlön, Uqbar, Orbis Tertius é um conto tão bom que me permito gostar dele mesmo tendo algumas reservas. Uma literatura que se conquista, não uma literatura amiga.

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