domingo, 29 de junho de 2008

A ave

A man awaits his end/Dreading and hoping all.

É terrível assistir à perseguição de uma presa, no mundo animal. O natural num ser humano é se identificar com a vítima, afinal, trata-se de uma vida e, embora o predador precise daquela outra vida para sobreviver, sua necessidade é mais larga e menos premente. Os dois lutam pela sobrevivência, mas na nossa típica estreiteza de visão, o predador pode prescindir de uma refeição, seus motivos são menos nobres.
Pouco contribui para que simpatizemos com o matador o fato de que às vezes ele prorroga o martírio, brinca com a desgraça da presa, demonstrando que o termo da vida dela está completamente subordinado ao seu arbítrio. Ou ainda, o assassínio tem em vista eliminar os rivais de seu grupo ou os filhos que não carregam seus genes (assim nos fazem crer os especialistas, embora eu não consiga, por mais que tente, enxergar isso).
Lembro-me de um poema do Yeats: para os animais a morte não traz esperança nem temor como para os homens. Eu diria mais, todas as emoções humanas são funções do temor ou da esperança.
O homem teme e espera o tempo, nada mais. Espera e teme, apenas, quando deixa de ser ele mesmo e cria um passado na memória e um futuro na imaginação. A imagem do passado querendo alcançar o futuro naquela impossibilidade matemática que é o presente, o infinitamente curto e único espaço onde a vida é possível, equivale à caça, à busca, à incerteza, à esperança de uma parte e o temor de outra (e ambas têm, alternativamente, temor e esperança). A frustração de uma caça não concluída se completa com o êxito de uma fuga bem sucedida; o tempo é implacável, alguém sempre vence para que alguém sempre perca. O rompimento do cordão umbilical, para me ater a um símbolo, nos joga nessa incessante busca pelos primeiros desse presente que se conta em segundos. Comparamo-nos uns com os outros para ver quem consegue alargar mais essa medida impossível.
Ao qualificar a vida dessa forma, no entanto, corro o risco de desprezar a própria esperança como fim. Quantas pessoas não há imitando Tântalo, buscando o inalcançável alcançável sem se dar conta de que é só essa frágil impossibilidade que as atrai? Ou que desprezam o bom e justo pelo incerto, a experiência pelo risco da novidade, o todo por metonímias? E que só sabem lamentar a má sorte, o infortúnio de suas vidas e exorcizar sedutoramente as fantasmagorias de suas grandes peças divinas, interpretadas por sombras caprichosas de um eterno crepúsculo?
Há também os que só temem, os que acham que já viveram tudo, os plácidos amargurados, pessimistas, os que contam o tempo que lhes falta, seja para o que for, os que buscam o caminho de suas vidas em qualquer ciência divinatória, que não têm escrúpulos em forjar uma variedade de fatos que justifiquem seus inseguros passos em círculos, ainda que seus olhos estejam sempre voltados para fora.
Ambos não costumam pensar no fim, porque estão presos na falsa noção de que a vida é uma dádiva positiva da não-existência. Confundem o pensamento e a materialidade com a verdade. Pensam que a prova da existência só pode ser dada no tempo presente. Restringem as cores, a música, a vastidão do universo sonhado por Deus a um espaço negro e estreito, limitado pela lente dos seus telescópios.
Já quis cantá-los em verso. Hoje, sei que uma ave marinha voa, avista o peixe, mergulha e, bem ou mal sucedida, retoma novamente os ares. Por mais que seu sustento esteja nas profundidades, seu gesto é que permanece na minha lembrança, o ser mais gracioso que já existiu, que se mantém no céu sem nenhum esforço, essa sua natureza.
Nenhum ser humano jamais foi aos funerais de uma ave marinha.

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