quarta-feira, 30 de julho de 2008

Nothing will die

Eu me lembro, numa madrugada perdida, mais ou menos como esta, de ter assistido a The Elephant Man, se não me engano na Bandeirantes. Isso deve ter uns 15 ou 20 anos, na época em que a inocência e a esperança ainda tinham as mãos atadas, e que nossas noites insones eram capazes de suportar tudo, até mesmo uma obra-prima, mesmo que dublada.
Lembro-me, também, que o filme era estranho, estranhíssimo e, talvez – disso já não me lembro tanto – eu esperasse que fosse mais um daqueles de terror, do tipo Nasce um Monstro, que era orgulho de tantos rapazolas como eu, naqueles dias.
De início, a deformidade do protagonista causou repulsa, mas logo depois se transformou em compaixão, qualidade humana das mais requeridas numa obra de arte. O filme me deixou arrasado tamanho impacto emocional ali contido e, certamente, mesmo para um pré-adolescente como eu, trazia muitos ecos de experiências pessoais e histórias ouvidas na infância.
Hoje, vi novamente, acredito que pela terceira vez. Sem dúvida, a primeira depois de saber quem é David Lynch e conhecer seus filmes. Continua sendo uma experiência de mudar a vida, nem que seja para você tomar vergonha na cara e procurar ver os outros filmes dele, para começo de conversa, afora isso, permanece um dos filmes mais terríveis, uma das histórias mais tristes que o cinema já contou. Como disse o próprio John Hurt, protagonista, quem não se sente tocado pela história não merece ser qualificado como ser humano. Pesa, sem dúvida, o fato de que o homem elefante realmente existiu, é um dos ícones da era vitoriana e, de certo modo, um dos símbolos, também, de como o homem moderno, especialmente o do fin-de-siècle, diferenciou-se daquele anterior, no que tange especialmente a isso, o espetacular, o inaudito.

John Merrick sofre de uma deformidade que faz com que parte do seu corpo seja grotescamente desproporcional, especialmente a cabeça. Sua vida é se mostrar como aberração num freak show, onde é explorado e abusado por uma espécie de “dono”. Até que um dia, um cirurgião renomado, Dr. Treves, resolve examiná-lo e desenvolve uma simpatia por ele. As voltas e reviravoltas romanescas do filme mostram Merrick como um sujeito normal, gentil, amável e educado, apenas assustado e traumatizado com o tratamento rude e truculento que recebera durante toda a vida, mostram também sua sina de ser explorado, até mesmo, inicialmente, por Treves, ora como uma aberração circense ora como atração puramente humanista e morbidamente curiosa. Explorado até o fim, doente, ele encontra consolo na amizade que faz com Dr. Treves, uma atriz, Fanny Kembles, e as enfermeiras do hospital onde passa a morar, bem como na simpatia geral das pessoas, familiarizadas com sua história nos jornais – sim, a imprensa inglesa tem tradição nesse tipo de coisa.
O que David Lynch enquanto David Lynch conta é a história de uma alma atormentada dentro de um corpo deformado, querendo ser libertada da escuridão, angustiada com a beleza, a vivacidade que ia dentro e aterrorizada com a própria aparência, via de regra espelho do horror alheio e espelho de si mesmo. John Merrick só queria ser um homem como qualquer outro, poder elogiar uma mulher bonita, vestir-se bem, ser cordial, ter amigos, poder se expressar, mas acabou tendo que se conformar com a mais abjeta visão de si, fruto das deformidades do seu corpo e, por ser tratado e exibido como animal, acabou reprimindo até mesmo o ato mais humano que podia salvá-lo, o da fala e da comunicação.
Ao ser reintegrado pelo Dr. Treves à convivência humana, todas aquelas quimeras ressurgem – para Lynch, a palavra melhor é emergem – e ele pode novamente se imaginar como um ser humano passível de ser amado. E, de fato, no momento mais belo do filme, ele afirma que sua vida é repleta porque sabe que é amado. A ironia mais do que óbvia é que essa, embora uma verdade universal, que nos assemelha a nosso vizinho mais distante digno de se chamar um homem, é, no entanto, tão difícil de ser enxergada. A necessidade mais básica de John Merrick é para ele simples e cheia de sentido pelo fato de que o trato normal para com uma pessoa estigmatizada como ele é o horror, a repulsa, a reação normal – mais uma vez em suas próprias palavras – de temor frente o que não pode ser compreendido. É porque tudo sempre foi tão negro para ele que o branco é nítido, compreensivo e lindo, como talvez nunca consigamos entender, por mais que nos esforcemos. Curiosa condição humana, curiosos e misteriosos desígnios que constituem a vida.
The Elephant Man é tanto sobre o homem elefante como sobre nós, os espectadores de seu drama. Porque assim como ele sugere repulsa por sua deformidade, também exerce um fascínio que nos faz pagar para vê-lo, que incita nossa curiosidade, aumentada pelo exímio cuidado de Lynch de insinuá-lo apenas, no início do filme, como que a dizer que nós também somos aqueles assustados pagantes do show de horrores, mesmo que sob a perspectiva médica ou da de meros amantes de uma boa história. Esses os ingredientes: mistério, imaginação e a comoção do estranho que nos repele, que nos faz gostar mais de nós mesmos, de nos sentirmos ingratos por tanta indelicadeza de espírito, de pensar como Deus pôde ter concebido tanto sofrimento numa sua criatura etc. Esse jogo dialético de se sentir ao mesmo tempo reconhecido ali naquela figura disforme, como um ser humano, de ter compaixão, simpatia por ele, e, ao mesmo tempo, a repulsa como que a um animal querendo ser humano, repulsa física, quando não também inculcadamente moral. Para isso, basta lembrar que durante muito tempo os doentes e aleijados eram tratados como espólio da ira divina, as doenças ou deformidades nada mais eram que estigmas de injúria moral ou marcas expiatórias de todo um povo. Como exemplo, basta citar Ricardo III, cuja deformidade física é a todo momento relevada pela deformidade de caráter, moral, na obra de Shakespeare. A caridade, inspirada por esse dúbio sentimento de temor e atração pela desgraça alheia, é bem diferente da santidade, que se aproxima do amor; o qual nós, sejamos quem formos, podemos nos considerar sortudos se tivermos de uma meia-dúzia de pessoas durante toda a vida. Amor é algo que perfura, transgride, reage, põe do avesso. Não é do amor suportar, tolerar, dar, querer, ele se contém em si e para si, e só ama. Uma pessoa tão pouco “amável” como John Merrick é capaz de perceber isso naturalmente, e talvez seja esse o grande presente divino que ele teve e que nos dá hoje, mesmo que por meio de uma obra de ficção.
Porque o verdadeiro John Merrick não era nada ficcional, era mesmo humano e tinha todas as contradições que se espera encontrar em qualquer ser entre o céu e a terra. Juntou uma boa soma de dinheiro com suas exibições. Não há provas de que tenha sido explorado ou agredido na Inglaterra. Só não conseguia falar por um defeito na boca que o impedia de articular palavra. Foi ele que procurou a ajuda do Dr. Treves. Queria morar num hospital de pessoas cegas para conhecer uma moça que não se apavorasse com sua aparência. Enfim, era muito menos animal do que no filme, muito mais próximo de uma realidade como entendemos e, curiosamente, como se pode constatar em fotos reais suas, mais deformado do que na ficção. Assim acontece também com o verdadeiro espectador, que vai continuar se comovendo com a história de John Merrick mas não dando a mínima – ou só dando a mínima, que para ele é mais do que suficiente, mas no final das contas é a mesma coisa – para qualquer aflição que lhe chegue. Não creio que nenhum dos dois seja de se culpar, e é apenas natural que as coisas sejam assim. Querer que sejam diferentes é ao mesmo tempo ingenuidade e falsa modéstia.
Gosto muito de pensar que o sentido inteiro do filme, como de tudo que existe, são as últimas palavras da mãe dele, de que nada morrerá nunca. As estrelas e o tema fazem lembrar, entre outros favoritos, do final de um filme de Lynch mais recente, The Straight Story. As influências orientais são visíveis em ambos momentos ao igualar a vida ao universo, e a existência, eterna, a um simples ato que nossos limitados vocábulos reduzem a esse termo tão desgastado que é o amor.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Mário Bertagnolli

Mário José Siqueira Bertagnolli, 37 anos, desempregado, vive de economias e bicos que faz para uma pequena editora de um amigo. Separado, mora sozinho num apartamento de um quarto na Bela Vista.

Um dos consolos para esses tempos difíceis é voltar ao bairro onde nasceu. Na verdade, meio consolo. A casa onde morava não existe mais, a venda do seu Estêvão é agora um depósito de móveis velhos, as faixas de pedestre apareceram onde não deviam, os carros dói ouvi-los passando em grande volume e pouca velocidade. Só a igreja de Santa Luzia continua lá, incólume, a não ser por umas reformas na ala da capela e pela árvore que ficava ao lado da passagem para a sacristia não existir mais. Ali as melhores lembranças de sua avó italiana, beata, que o levava para rezar todos os dias; ali ainda o silêncio frio e atmosférico daqueles anos; ali, o tempo parado, ele conseguia chorar a tristeza profunda de sua separação.
Dizer qualquer coisa da vida pregressa de sucesso, da extrema inteligência, da generosidade, do caráter do Mário é não lhe fazer justiça. Ele mesmo se define, tomando palavras de um dos seus romances preferidos, como um homem muito respeitável, de quem todos falam bem, mas de quem ninguém nunca se lembra. Portanto, em respeito a ele, deixo as glórias e as felicidades do passado para contar a dor do presente. Ainda que, para ser mesmo justo, a dor do presente é tão referendada pelo passado que, inevitavelmente, no tugúrio – como ele gosta de se referir romanescamente a seu apartamento – só, amargurado, em meio aos livros sempre querendo dizer mais que suas páginas, resta-lhe pensar no passado.

Mário conhecera Beatriz na faculdade. Os dois fizeram Letras, embora tivessem metas completamente diferentes. Ele só gostava de ler e aprender línguas, era sua secunda faculdade, já tinha formação em Arquitetura, mas construir, para ele, só era interessante do ponto de vista humano. Ela queria dar aula de inglês, embora tivesse muito pouco talento para a coisa. Começaram a namorar dois anos depois de se conhecerem. Ela havia acabado de sair de um namoro e ele era o amigo mais próximo. Entre a apresentação e o primeiro beijo não houve nenhuma sedução além de um almoço pago por ele num restaurante chique e um elogio por parte dela da erudição e da generosidade dele. Foi assim, burocrático e complementar o relacionamento deles, bem de acordo com a sede de controle de Mário.
Dizer se era feliz? Hoje ele vê que sim, tem plena e absoluta certeza. E durante a primeira separação, quando sua prima psicóloga lhe disse que só estava valorizando e superdimensionando uma perda narcísica, ele se acabou, pensando que ainda era aquele moleque que se debatia porque a mãe não podia lhe dar o carrinho de controle remoto e, finalmente, quando o teve, viu que nem era tão bom assim. A sina humana, ele gostava de pensar. Como saber se Beatriz valia tudo aquilo mesmo se agora nem um remoto controle ele podia ter sobre ela? O carrinho-Beatriz que primeiro veio e depois se retirou, invertendo a lógica da sua infância.
Ficaram casados por quase cinco anos. Ela se dizia casada, ele não gostava, afinal, nunca houve cerimônia nenhuma, eles eram um casal, mas não casados. Havia uma harmonia muito grande entre o silêncio dele e a extrema vivacidade dela em contar absolutamente tudo que se passara no seu dia. Era uma das coisas que ele adorava, os olhos dela sempre se acendiam com coisas simples, banais, às vezes ele desligava a atenção do que ela dizia apenas para prestar atenção no movimento daqueles olhos, no canto da boca que mais dizia calado, nas mãos que ele sempre amara – a única coisa de Beatriz que o impressionou desde o primeiro instante, mesmo quando ela ainda namorava o Tadeu.
Achava-a bela? Não, nunca achou. Nem feia. Reprimia em si o fato de a beleza contar para um relacionamento. Fazia uma comparação com a arquitetura, onde a beleza exterior das linhas muitas vezes sacrifica a interior, ou a eficiência, funções da existência de uma obra arquitetônica, mas jamais as aniquila, ao passo que no caso dele com as mulheres, a beleza interior, a eficiência, a placidez que elas podiam lhe oferecer era o essencial, a despeito de uma falta de beleza ou brilho, desde que esta não seja completamente subjugada pelos anteriores. Assim ele formulava, assim ele regrava. Mário era cheio de comparações, metáforas, hipérboles e justezas, e foi acertadamente que alocou Beatriz numa delas, como numa lacuna da sua vida, onde tudo devia ser cuidadosamente moldado para que a paz finalmente reinasse, a paz com que tanto sonhava.
A paz, sim. Mário nunca a teve. Até hoje ele não entende o que é isso que procurou a vida inteira. Fato é que Beatriz, por ser uma belíssima hipérbole, às vezes, uma metonímia útil, outras, acabou sobrando de seu vocabulário aplicado, o duro e realista da linguagem dos engenheiros, melhor dizendo, das engenheiras.

Mário nunca traiu Beatriz, foi ela quem o traiu.
Essa excrescência da vida, esse relevo dos planos, essa bravata do caminho não-tomado foi o que o excitou e o destruiu, e destrói ainda agora. Júlia era uma engenheira que vinha de outro estado. Vestia-se bem, tinha cabelos lisos e loiros, usava batom, andava como que desfilando, ela era um compêndio de todas as coisas que Mário sempre abominara. No entanto, ao abrir a boca e falar com ele, apenas semeou-se e encanto da sereia, aquela voz terrível, melodiosa, alongada, algo infantil e sussurrada, contrastava com a postura séria, compenetrada dos croquis e esboços. Sem que se desse conta, Mário começou prestando atenção nos sapatos dela, depois na canela, no dia seguinte já achava aquele o único andar possível numa mulher de verdade. Não chegava a se culpar por isso, amava Beatriz e sabia que ela era a mulher da sua vida, mas já as histórias dela perdiam o interesse, os olhos de Beatriz eram menores do que os de Júlia, as mãos mais belas, mas exageradas no gesto, as pernas, definitivamente, menos longilíneas e elegantes – Beatriz não tinha tornozelos. Quando percebeu, Júlia estava no seu café-da-manhã, louca para que ele chegasse logo ao escritório e pudessem concluir a ala esquerda da obra. Foi nesse dia que a Florbela Espanca entrou e deu-se a derrocada oficial.
Almoçaram juntos, porque o prazo chegava e eles tinham pouco tempo para resolver os últimos detalhes. Ela o surpreendeu falando num tom insinuante e lamentoso sobre como era difícil viver em São Paulo, sendo de outro estado. Mário até percebeu que ela forçava o sotaque enquanto falava, mas devia ser apenas uma impressão. Júlia usou de uma intimidade e de uma cumplicidade inéditas, num almoço onde só deveriam discutir os interesses do escritório, como resistir àquilo? E ele não queria, derrubada a última barreira, em menos de uma hora toda a vida deles tinha sido exposta. Muitas coisas, interessantes e fúteis, de Júlia fizeram com que Mário esquecesse de todo o resto, do trabalho, da literatura, de Beatriz, de sua mãe, da viagem para Europa, mas falar delas é falar de Júlia, e ela pouco interessa. Interessa a Florbela, que Mário sempre odiou, com a cumplicidade de Beatriz, inclusive. Mas esse era um dia de inaugurações e reformas, conceitos tão caros a arquitetos e engenheiros, assim que o talento vocal de Júlia e uma certa propensão à dramaticidade que o acompanhava mostraram o fio de sua lâmina quando ela declamou para ele um daqueles sonetos mais piegas da portuguesa infausta. Mário, em silêncio, agradeceu a todos os santos por estar sentado, pois sua perna tremia mais do que os ciprestes do poema. Sorriu, sem-graça, viu que mal tinha tocado na comida e ficou mais sem-graça ainda. Ela, sem nenhuma cerimônia, como se qualquer almoço de sua vida fosse como aquele, lentamente olhou a hora e viu que estavam atrasados para a reunião. Derrocada oficial, sim, porque desde aquele instante, não havia mais reunião no universo que desunisse seu pensamento dela, a dama exótica e desamparada, que lhe cantava as mais belas melodias improvisadas do universo e que nenhum ser humano a não ser ele poderia ter, em lugar nenhum, em tempo nenhum.
Beatriz desconfiou. Mário sempre foi sujeito honesto, cordato e não tinha o sangue frio necessário para esconder a história. Também não contou, só desconversava, culpava o trabalho. Por essa época, o projeto já tinha sido concluído e ele não via mais Júlia. Começaram a trocar e-mails. Ele meio que confessava seus sentimentos, mas ela, num tom compatível ao da sua voz, desconversava, soltando alguns mimos, algumas extravagâncias, como de costume. O tom era pessoal, obviamente, mas embora ele estivesse a um passo de se jogar aos pés dela, ela sempre mantinha uma distância prudente e impassível. Depois de alguns meses assim, Júlia finalmente cedeu e disse que sentia a falta dele, que um ou outro dia que ele não escrevesse não era um dia como os outros, e resolveu aceitar um dos convites para que se encontrassem. Palavras apenas vagas e ambíguas soaram como uma declaração de amor para ele.
Não, Mário nunca traiu Beatriz, foi ela quem o traiu.

Júlia sabia de Beatriz, mas nunca falava nela. No entanto, antes de aceitar se encontrar com Mário, naquele típico orgulho misturado com curiosidade das mulheres, perguntou, por telefone, o que a sua esposa achava daquilo. Mário odiava sarcasmo e, pego de surpresa e indefeso, disse que as coisas andavam mal no casamento, e que, praticamente, já estavam separados. Disse isso e, enquanto dizia, ouviu com um espanto enorme sua própria sentença proferida. Talvez soubesse o quanto de profecia uma mentira nesses termos se veste. E foi, e disse.
Uma semana depois, de fato, separavam-se, três dias antes do preconizado encontro, que nunca aconteceu. Beatriz, num descuido dele, leu os e-mails. Indagado e afrontado, não negou, mas fez aquilo que todo homem, covarde, faria, na hora, disse que a amava, que aquilo tudo era só uma fantasia dele, que ela era a mulher da sua vida. Muita coisa feia e fétida foi dita naquela noite, ofensas de ambas as partes. Beatriz se foi, chorando. Mário ficou, inerte. Não teve notícias dela por duas semanas. Numa inversão monstruosa, resolveu colocar toda a culpa em Júlia e, desde então, nunca mais se falaram.
Frustrado consigo mesmo e sabendo que não poderia continuar daquela forma, tirou uns dias de férias. Como não conseguia tirar aquilo da cabeça, escreveu duas cartas enormes, onde resolveu contar tudo para Beatriz. Depois de duas semanas, como dito, ela resolveu ligar para ele. Pediram desculpas, até riram um pouco. No dia seguinte, encontraram-se, ela estava linda, ele se sentia fraco, abatido. Apenas sugeriu que ela voltasse, ela voltou.
Aqueles foram os melhores dias, ele a tratava muito bem, retomou dobradamente o prazer de sua companhia. Ela não contava as coisas como antes, mas ainda contava, e talvez fosse tudo insegurança da cabeça dele achar que era diferente. Iam ao cinema, liam juntos, o trabalho voltou, ele produzia, começou a ler A montanha mágica, uma vergonhosa lacuna de décadas nas suas leituras.
Mais ou menos três meses depois que reataram, numa noite quente de junho, tendo tomado seu café após o jantar preparado por ela, Mário ouviu de Beatriz que estava apaixonada e, a julgar pela sobriedade do seu semblante, e, como de resto, nunca fora afeita a piadas, não era por ele, como por instantes o desusado da situação o fez crer. Era um tal de Jean-Luc, belga, que ela tinha conhecido numa das festas da Natália, sua amiga de faculdade, naquelas duas semanas de separação. Mário não sabia o que dizer nem o que fazer, disse para que ela refletisse com bastante calma sobre o que estava falando, que analisasse se era isso mesmo, que, agora que estavam juntos novamente, era natural que ela se sentisse insegura, depois de tudo que aconteceu. Ela consentiu e disse a ele que, mesmo não tendo feito nada com o outro, não se sentiria bem de não contar o que se passava com ela, pois a briga que gerou a separação tinha origem na omissão e dissimulação dele. Um pouco mais sossegado, ele pensou até que era invenção de Beatriz, apenas para devolver na mesma moeda o dano que lhe havia causado.
Os dias que se seguiram se alavancavam. Ela distante, ele desconfiado. Começou a investigar cada palavra dela, que já não eram muitas, os telefonemas, o perfume, a hora que chegava em casa, mas, ainda assim, temia tocar no assunto novamente. Ela já quase não olhava para ele e dissimulava as palavras educadas de quem se convive. Quando estava num ponto insuportável, Mário tomou a decisão de perguntar o que estava acontecendo, que situação era aquela, afinal. Mas antes que pudesse tomar essa iniciativa, no entanto, Beatriz veio e lhe disse que estava tudo terminado; seca e resoluta, como antes. Naquele momento ele entendeu que ela já “estava” com o belga e que, muito provavelmente, como ela se despedia, naquele mesmo instante o cara já devia estar esperando por ela, na rua. O verbo foi se tornando ácido até que, numa reviravolta desesperada, deu lugar a cenas de humilhação explícita, ele disse que a perdoava, que não o deixasse, que ele não sabia viver sem ela, ao que ela repetia e incitava, compreensiva, porém sem se inclinar, que era para ele se compor, que o casamento já não existia há muito, que ele não iria morrer sem ela, mas que ela não queria mais morrer com ele. Nessa hora, Mário pensou nos tornozelos de Júlia e se deixou prostrar no chão do apartamento escuro.

Nos meses seguintes, ele perdeu o emprego, perdeu o sono, perdeu a fome. Sua mãe foi cuidar dele e conseguiu, a duras penas, fazer com que tivesse um pouco de ânimo.
Hoje, um pouco melhor, faz traduções para um grande amigo, dono de uma editora de livros esotéricos e de um coração tão generoso quanto o dele. Entrega-as pessoalmente, para poder, entre outras coisas, visitar a rua onde morava, quando criança. As traduções não lhe interessam nem aborrecem, são mera ocupação. Como gosta de ver sentido em tudo, pensa que é o seu destino ser tradutor e não escritor, transformar da melhor maneira possível, em vez de criar. Vê alguma graça nisso e já fez alguns projetos de filantropia, para quando se sentir animado novamente. Dinheiro não falta, ele sempre soube economizar, e, na verdade, não gasta muito, ficando em casa o dia inteiro, comendo pouco, fazendo nada. Também está relendo os livros que leu antes da faculdade, está na metade do Dom Casmurro, pretende terminar ainda hoje, mais tarde.

Neste preciso instante, Mário está sentado na poltrona, olhando para a janela. Não, ele não está deprimido, só ouve atentamente o silêncio de Beatriz, que dura até agora.

domingo, 6 de julho de 2008

Analogias

hlör u fang axaxaxas mlö

Parece que todo mundo já leu Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, assim como todo mundo que conhece tem de, obrigatoriamente, gostar de Borges. Essa sempre foi minha impressão. E como fujo de toda unanimidade, fiz a maior covardia possível, não li para não ter que concordar nem discordar da maioria.
Isso até dois dias atrás, quando, para variar, o livro se atirou em mim, pedindo para ser lido. Li.
Como todo mundo conhece o bagulho, não vou contar a historinha (seria prepotência com os meus cerca de dois leitores). Só digo o ponto pacífico: é uma fábula, uma utopia berkeleyana, uma invectiva de Borges contra o idealismo soi-disant. Para isso, ele usa a fórmula conhecida da hipérbole e enche de detalhes e referências para mostrar para todo mundo como é erudito, sem ser exatamente pernóstico.
Eu que não tenho capacidade para fazer um estudo sobre as múltiplas faces de Tlön e suas conseqüências, detenho-me naquilo que mais me interessa: a relação deles com o tempo.

Num mundo como Tlön, onde não há concepção de matéria, não há substantivos, nomes, delineações de objeto e, ao mesmo tempo, não há solipsismo, a saída é não conceber também o sujeito, mas um panteísmo idealista, mais ou menos à moda do inconsciente coletivo junguiano, onde toda a humanidade consiste em um só sujeito, dividido em todas as particularidades quantas possíveis no universo de indivíduos. Curioso dizer que a psicologia se torna a ciência por excelência nesse mundo onde qualquer ciência – como as entendemos na Terra – é impossível, uma vez que os fatos, bem como os estados mentais, não são jamais concebidos como uma cadeia seqüencial ou causal, impossibilitando, portanto, qualquer encadeamento lógico de proposições.
Uma vez que a concepção de realidade é incapaz de delinear a matéria, o referente, juntamente, cai totalmente por terra. O que se vê é que a todo momento há uma espécie de deslumbramento do sujeito frente à realidade. Inevitável: se o homem não delineia o espaço, delineia o tempo. Esse parece ser o grande salto e a grande ousadia da utopia borgiana, embora nunca explicitada. O fato de ser uma utopia dentro de um contexto real, de ser um mundo criado dentro de um outro inventado, aquele da ficção literária – e aí cabem as metáforas do espelho, da enciclopédia, do atlas – o redime da responsabilidade que, no final das contas, não caberia num mundo onde a lógica foi abandonada, onde somente a coerência e seus corolários são obsessivamente mantidos.
O que Borges não diz é que o homem não é divino em todos seus aspectos; é extremamente limitado e mesmo os melhores só conseguem “transcender” essa limitação em experiências completamente particulares. A ciência, no sentido que o termo ganhou a partir da Idade Moderna, é limitada, é material. Tentar fugir disso é meio que como girar o caleidoscópio. O negar o materialismo de Tlön é fazer poesia para os terráqueos. Por isso, para nós, a língua deles é extremamente inventiva e poética no seu afã de ser descritiva nas qualidades e não nas quantidades. A topografia deles de “torres de sangue” nos soa, na pior das hipóteses, como versos mal-feitos, querendo superar a realidade do que percebemos, como terráqueos. Por outro lado, quando se põem a fazer ciência, transformam tudo em psicologia, e é dessa forma que os metafísicos preferem o assombro à verdade, a literatura fantástica a uma busca por uma realidade imanente do mundo em que vivem. Aí, Borges se auto-refere: a única função possível da literatura “séria”, num mundo onde não há referentes nem história, é criar um outro mundo, como ele mesmo faz, onde, quem sabe até, a Terra seja recontada, para citar um outro tema caro a sua literatura. Onde os pensadores de Tlön criam filosofias, nada mais estão fazendo que criar sistemas, onde pensam rechaçar a ciência, aí sim, perigosa e paradoxalmente, fazem filosofia. Como é o caso do materialismo, onde a questão das moedas achadas relembram os clássicos problemas gregos, berço da lógica e da filosofia terráqueas.
Mas aí vem a questão do tempo, na minha opinião, a mais fascinante do conto. Pensar numa sociedade onde os fatos não existem porque não podem perdurar no tempo é algo simplesmente fantástico. Convenientemente, o idealismo radical desprende qualquer realidade objetiva do intelecto e transforma a realidade perceptível – a mediação, por assim dizer – em único dado palpável. Na clássica metáfora, seria como se carregássemos uma vela epistemológica diante de nós e qualquer penumbra ou obscuridade fossem isso que aparentam ser, reinos impenetráveis; um sensorialismo que nega o materialismo e escapa da heresia da Mente ao igualá-la a Deus. Levar essa idéia absurda às últimas conseqüências é negar totalmente o delineamento da matéria, da identidade, portanto, negar também o movimento, única prova de “existência” do tempo. Ao homem só resta ver o mundo como uma série de quadros onde cada um deles nada tem que ver com o outro, por mais próximos que estejam. Fazendo dois paralelos com o mundo de hoje, a concepção de mundo terráquea é analógica, a de Tlön, digital. Também, do ponto de vista perceptivo, um terráqueo sabe bem, embora não perceba, a diferença entre o que vê na vida real e o que vê numa lanterna mágica ou no cinema, onde os quadros se aceleram a ponto de criar a ilusão de movimento, o homem de Tlön, pelo contrário, vive o cinema o tempo todo, e só consegue poeticamente imaginar um mundo onde outra coisa seja possível (está provado pela “ciência” de lá que esse mundo é impossível de ser criado de fato). Na Terra, o homem tenta explicar a incongruência de um acontecimento através da mágica, de milagres, déjà vu’s, em Tlön, é perfeitamente possível – e até provável – que um dos quadros da realidade se distorça, nem que seja somente para verificar que assim é a realidade.
Verificando a limitação que há entre a língua e o mundo, podemos ser um pouco mais tolerantes com um mundo análogo, como o proposto por Borges. No final das contas, trata-se de um problema epistemológico, de deficiência da percepção humana, de uma escolha, em menor ou maior grau, de abstrações para sua incapacidade de chegar na questão ela mesma. Tanto a questão da continuidade do tempo como a da continuidade do espaço são reduções de questões divinas, mistérios a serem diminuídos ou elevados por meio de abstrações simbólicas. Ficar revolvendo o escopo disso é como sambar teimosamente uma valsa. O prático é reduzir, transformando a matéria em átomos, o tempo em segundos. Mas ambas reduções são altamente frustrantes e insatisfatórias na nossa experiência humana. Na verdade, na verdade mesmo, somente a psicologia tlöniana, que relativiza a capacidade tanto do tempo como do espaço, é capaz de amainar um pouco nossas angústias existenciais. Seria interessante saber como eles entendem o infinito. Em relação ao tempo, existe até a hipótese de que ele não exista, um pouco exagerado no caso de Tlön, mas bastante adequado. Pensando como um deles, nossa relação de tempo só é seqüencial por razões práticas. No limite, o sujeito sempre muda: o desgaste infinitesimal de uma moeda – para usar como exemplo um objeto do próprio conto – ao longo de um minuto, que seja, faz com que ela não seja uma identidade, conquanto possa cair no engodo da consciência cartesiana.
Permito-me ainda fazer um comentário moral. Um homem que sabe que não tem identidade com seu futuro ou passado está pronto a fazer tudo sem a responsabilidade do ato. Assim, também, toda relação humana tende a ser vazia, pois se pode descartar – e de certo modo até deve-se, nessa inversão moral – aquele que não é interessante agora porque só o presente, e não a experiência desse presente, cabe em nossas vidas. A armadilha é clara e reveladora, o idealismo puro não deixa de ser um materialismo diabólico, na medida em que nega até a si mesmo. A pureza das idéias se limita no momento mesmo em que são só idéias e não reflexões. A meu ver, aí está implícita a invectiva de Borges quanto ao nosso mundo estar se tornando, sorrateiramente, Tlön. Algo perverso, diabólico, travestido de grandes respostas humanas a questões meramente divinas, transcendentes.
Há ainda a questão muito interessante dos hrönir, mas paro por aqui em respeito aos meus dois leitores que a essas alturas já estão pensando seriamente se alguma vez voltarão.
Termino dizendo que Borges faz, sim, grande literatura. É claro que não precisa de um José Manuel como eu para dizê-lo, portanto, digo mais como uma confissão de admiração. Usando o ideal artístico de Pound, ele gera o máximo de significado no menor espaço possível, condensação de possibilidades de leitura, poesia do mais alto grau. Borges é um daqueles que dá vontade de verificar todas as referências, porque elas, na verdade, são convergências e não distrações. E Tlön, Uqbar, Orbis Tertius é um conto tão bom que me permito gostar dele mesmo tendo algumas reservas. Uma literatura que se conquista, não uma literatura amiga.

domingo, 29 de junho de 2008

A ave

A man awaits his end/Dreading and hoping all.

É terrível assistir à perseguição de uma presa, no mundo animal. O natural num ser humano é se identificar com a vítima, afinal, trata-se de uma vida e, embora o predador precise daquela outra vida para sobreviver, sua necessidade é mais larga e menos premente. Os dois lutam pela sobrevivência, mas na nossa típica estreiteza de visão, o predador pode prescindir de uma refeição, seus motivos são menos nobres.
Pouco contribui para que simpatizemos com o matador o fato de que às vezes ele prorroga o martírio, brinca com a desgraça da presa, demonstrando que o termo da vida dela está completamente subordinado ao seu arbítrio. Ou ainda, o assassínio tem em vista eliminar os rivais de seu grupo ou os filhos que não carregam seus genes (assim nos fazem crer os especialistas, embora eu não consiga, por mais que tente, enxergar isso).
Lembro-me de um poema do Yeats: para os animais a morte não traz esperança nem temor como para os homens. Eu diria mais, todas as emoções humanas são funções do temor ou da esperança.
O homem teme e espera o tempo, nada mais. Espera e teme, apenas, quando deixa de ser ele mesmo e cria um passado na memória e um futuro na imaginação. A imagem do passado querendo alcançar o futuro naquela impossibilidade matemática que é o presente, o infinitamente curto e único espaço onde a vida é possível, equivale à caça, à busca, à incerteza, à esperança de uma parte e o temor de outra (e ambas têm, alternativamente, temor e esperança). A frustração de uma caça não concluída se completa com o êxito de uma fuga bem sucedida; o tempo é implacável, alguém sempre vence para que alguém sempre perca. O rompimento do cordão umbilical, para me ater a um símbolo, nos joga nessa incessante busca pelos primeiros desse presente que se conta em segundos. Comparamo-nos uns com os outros para ver quem consegue alargar mais essa medida impossível.
Ao qualificar a vida dessa forma, no entanto, corro o risco de desprezar a própria esperança como fim. Quantas pessoas não há imitando Tântalo, buscando o inalcançável alcançável sem se dar conta de que é só essa frágil impossibilidade que as atrai? Ou que desprezam o bom e justo pelo incerto, a experiência pelo risco da novidade, o todo por metonímias? E que só sabem lamentar a má sorte, o infortúnio de suas vidas e exorcizar sedutoramente as fantasmagorias de suas grandes peças divinas, interpretadas por sombras caprichosas de um eterno crepúsculo?
Há também os que só temem, os que acham que já viveram tudo, os plácidos amargurados, pessimistas, os que contam o tempo que lhes falta, seja para o que for, os que buscam o caminho de suas vidas em qualquer ciência divinatória, que não têm escrúpulos em forjar uma variedade de fatos que justifiquem seus inseguros passos em círculos, ainda que seus olhos estejam sempre voltados para fora.
Ambos não costumam pensar no fim, porque estão presos na falsa noção de que a vida é uma dádiva positiva da não-existência. Confundem o pensamento e a materialidade com a verdade. Pensam que a prova da existência só pode ser dada no tempo presente. Restringem as cores, a música, a vastidão do universo sonhado por Deus a um espaço negro e estreito, limitado pela lente dos seus telescópios.
Já quis cantá-los em verso. Hoje, sei que uma ave marinha voa, avista o peixe, mergulha e, bem ou mal sucedida, retoma novamente os ares. Por mais que seu sustento esteja nas profundidades, seu gesto é que permanece na minha lembrança, o ser mais gracioso que já existiu, que se mantém no céu sem nenhum esforço, essa sua natureza.
Nenhum ser humano jamais foi aos funerais de uma ave marinha.

sábado, 28 de junho de 2008

Fábio Martini

Fábio Luiz Martini, 42 anos, professor de Antropologia em duas faculdades particulares. Solteiro, mora sozinho num apartamento de um quarto num bairro cult da cidade. Comprou o apartamento quando a região ainda era considerada um lixo. Gabava-se muito por isso.

O que tudo mundo sabia sobre o Martini é que ele era um escroque. Que ele, aliás, adorava essa palavra. Mas ele tinha a rara qualidade de ser um mau caráter simpático, do qual você não espera muita coisa, mas sempre acaba confiando. Amava a mãe, admirava o pai e tinha pela irmã um certo desprezo por ser uma "burguesinha acomodada".
Sempre tivera uma argúcia muito maior do que a inteligência, sabia como poucos aproveitar as oportunidades que a vida lhe apresentava. Foi assim que conseguiu concluir, na universidade mais conceituada do país, o curso de Ciências Sociais, que não o interessava nem um pouco, mas, sabia, era onde encontraria mais facilmente mulheres tolas, drogas, pessoas manipuláveis e, sobretudo, onde poderia saciar sua sede irrefreável por poder pessoal. Sua fantasia de adolescência era conseguir convencer alguém a se matar, quase conseguiu, uma vez.
Ao entrar na universidade, no segundo ano, ingressou num programa de iniciação científica em Antropologia Visual. Não acreditava em nada daquilo, mas era bom, sobretudo, em entender e articular as coisas nas quais não acreditava. E claro, fazia com tanta dedicação e afinco que acabava acreditando, só para poder ser mais verdadeiro para a orientadora e seus colegas.
A orientadora, uma mulher de uns quarenta e muitos, na época, viu nele uma oportunidade de crescer no departamento e logo o promoveu dentro do grupo, sua palavra era sempre a mais ouvida e respeitada, e mesmo ela umas duas ou três vezes voltou atrás em suas convicções por causa do Fábio.
Foi nessa época que aconteceu o envolvimento dele com a Natália, uma menina de segundo ano que se apaixonou perdidamente por ele. Não a achava nada atraente, mas gostosa. Era difícil se segurar quando ela, inadvertidamente, deixava roçar os seios no braço dele, sentia aquela mistura inconfundível de perfume e desejo saindo da respiração dela. Era esse, sempre, o sinal de cio, esse o verde de que ele precisava. Um dia roubou um beijo, e nesse mesmo dia treparam, ali mesmo, na sala de reunião. Ela terminou com o namorado, eles treparam mais umas quinze vezes e ele passou a desprezá-la, como sempre fazia. Um monstro, a própria encarnação do mal, nas palavras dela. Natália saiu do grupo, mal-falada, passou a se interessar por Política, um dia conto a história dela.
O mestrado nada teve de interessante. Defendeu tese sobre um grupo, um gueto da cidade do qual nem ele mesmo mais se lembrava. E foi pouco tempo depois que se deu o rompimento entre ele e a amada orientadora. Numa publicação de uma revista, ele, já mestre, se sentiu no direito de colocá-la como segunda autora. Ela, doutora, se indignou. Começaram as ironias, que logo descambaram para ofensas pessoais. Ele saiu para não mais voltar, arrependido por ter jogado fora uma carreira de glória na universidade pública. Sabia que era um embuste e que sua chance de se dar bem passava pelo tapinha nas costas que a orientadora sempre dera, ora por consolo, ora como empurrão para as entranhas burocráticas do meio acadêmico.
Então se lembrou dos amigos, sempre tivera muitos. O Cláudio tinha uns contatos naquela nova universidade – instaurava-se a moda das faculdades públicas virarem universidades, o que não passava de um projeto barato de reengenharia de empresas, marketing puro, ele sabia - e podia arrumar um emprego para ele. Podia, sim. Dentro de um mês ele era um professor de renome na instituição, carismático, com boa formação, apelo entre os jovens. A vida sorria novamente. Adorava dizer que se não tinha conseguido a glória de ser presidente, pelo menos era vereador mais votado de cidadezinha do interior, e era por lá mesmo que começaria, tudo novamente.
Foi também por essa época que se aventurou como professor de cursinho, dava aulas de Geografia com microfone, coisa que detestava. Mas era incrível o assédio que recebia. Era verdade, professor de cursinho come todas. Ele fez jus. Até que uma dessas todas começou a ameaçá-lo, a coisa ficou séria, juntou-se a isso uma proposta, ainda mais séria, de uma outra "universidade" e adeus cursinho. Pelo menos ele nunca se esqueceria da Marta, da Aninha, da Talita, da Débora, da Marina, ah a Marina...
E assim então encontramos o Martini, debruçado sobre o painel do carro, tentando enxergar o semáforo parado sobre a faixa de pedestres, dizendo palavrões para o trânsito da cidade. Ia chegar atrasado. Durante toda a sua vida fora pontual, o seu principal mérito, acreditava. Agora, chegaria atrasado, precisava pensar num caminho mais eficiente. Tudo era questão de achar outro meio de conseguir chegar lá a tempo. Essas faculdadezinhas de gente burra e rica sempre ficavam fora de mão.
Martini viu uma menina de vestido azul e lembrou-se da sua aluna, a Luana. Nunca tinha comido uma Luana e isso o excitava. Assim era o Martini, caprichoso, todos seus amigos sabiam. Bem como tudo o que está aqui, sempre foi público. Uns sabiam mais do que os outros, ele tinha o dom de dizer as coisas certas para as pessoas certas, e na maioria das vezes saía-se bem. Era como a exibição de sua superioridade "humana", sua exibição pública de poder. Sempre precisou de platéia. Sua única amiga era a Larissa, eles nunca tiveram nada. Só ela sabia de tudo.
Mas o que ninguém sabia, ninguém mesmo, era que o único amor da vida do Martini tinha sido o Luciano, quando tinha quinze anos. Humilhação, porque o Luciano gostava da Beatriz, a Bia cdf, o canhão da Bia quatro-olhos, sardenta, dentes tortos. Sempre que pensava nisso, lembrava da Quadrilha do Drummond, ah, como odiava poesia... Beatriz parecia ser o sonho de todos os poetas e ele, Martini, também nunca tinha comido uma Beatriz.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Helena e Juno

Ellen Page é bem linda. Certamente, o sonho de todo dork que se preze. Não é muito feminina, tem gostos esquisitos, um certo orgulho mesclado a uma confiança que demonstram muito mais suas inseguranças do que propriamente a maturidade que ela se forja. Sim, uma mistura geek clichê e, por isso mesmo, irresistível. Um Bleeker jamais poderia não se apaixonar por uma MacGuff.

Na minha nerdice típica, fiz um apanhado de nomes clássicos que explicariam melhor essa fascinante mistura. Ela é Helena travestida de Juno. Tem a beleza irresistível de Helena, que fez todo um povo sustentar guerra por mais de dez anos contra uma cidade. E a insegurança madura e os olhos bovinos da Hera/Juno, nome de sua personagem, a deusa casada com Zeus/Júpiter, poderosa e influente, mas, no fundo, ciente da sua incapacidade frente a alguns fatos da vida.

Tenho uma boa e uma má notícia.

E não é que é isso mesmo? Aí estão as qualidades e defeitos de Juno. A tese do filme consiste numa inversão, revelada pela própria protagonista, numa das últimas cenas: é possível, num mundo de sexo fácil, clínicas de aborto que parecem lanchonetes fast-food, open adoptions, inverter totalmente o sentido de uma relação normal amorosa, engravidando para depois conhecer e começar um namoro com o pai de seu filho. Essa subversão, não é o próprio caminho de Helena, casada e infeliz com Menelau, descobrindo o amor com Páris e fugindo com ele? Uma atitude impensada e que jamais poderia acabar como acabou, não voltasse essa Helena, agora travestida de Juno, para os braços do mesmo homem com quem havia casado, depois que este venceu a guerra.

Certo, certo, estou trovando um monte de coisas aí no meio. Na Grécia não havia essas músicas irritantes que todo filme crescidinho tem que ter como trilha sonora e nem as milhares de referências pop que caem no vazio dentro dessa cacholinha aqui, que parou com essas coisas há eras. Tampouco Helena falaria com a “atitude” que o tempo todo essas teenagers têm que mostrar, como se estivessem se rebelando até contra o fato de respirarem. Muito menos o tal Menelau seria um herói só por usar um short dourado e parecer não ter certeza se o mundo gira em seu próprio eixo.

“Next time I see that Bleeker kid I'm going to punch him in the wiener.”

All things said, tem um monte de gente que vai dizer que é um poético e leve olhar sobre os problemas de uma adolescente que tem de enfrentar a maturidade através de uma gravidez precoce. Well, eu diria que ela começa mais madura do que eu esperava e termina muito menos. Outros dirão que Ellen Page merecia o Oscar pela interpretação. Eu diria que ela é uma Heleninha bem linda, pela qual dificilmente um dork não se apaixonaria, mas que as mãos dela são das mais horríveis que eu já vi.

Sinto saudades do meu Homero.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Luana

Luana dos Santos Figueiredo, 21 anos, estudante de artes visuais em faculdade particular. Mora com os pais, mas tem planos de morar sozinha "em breve".

Luana acordou feliz. Tinha sonhado com ele. Há dias andava perturbada porque o seu professor de Antropologia Visual finalmente resolveu prestar atenção nela. Sonhou que estava com aquele vestidinho azul, o cabelo preso, e eles caminhavam por uma longa alameda, dizendo coisas boas, das quais, infelizmente, ela não conseguia se lembrar. Logo mais, beijaram-se e ela sentiu dentro de si um calor inédito, original, como supunha sua imaginação.
Gérson era seu namorado. Já estavam juntos há dois anos, e tinham aquela cômoda e comovente relação de namorados perfeitos. Ela o amava, sabia disso, pensava até em morar com ele, antes de se casarem. E era sempre com uma ponta de amargura que se lembrava disso, agora, nesses últimos dias de flerte com o professor. Chegou a imaginar que estava com ele enquanto fazia sexo com Gérson, e como foi bom.
Mas o que mais a incomodava era um pensamento mesquinho do qual não conseguia se desvencilhar. O nome do professor era tão lindo, e ela, uma mulher tão segura, certa de si, merecia um nome daquele. Que futuro poderia ter com um Gérson? E era sempre assim, desde o primeiro mês de namoro; ela inventara um daqueles apelidos ridículos dos quais sempre tivera horror, pelo simples fato de que chamá-lo de Gérson era constrangedor, como era constrangedor apresentá-lo a seus amigos. Sempre percebia uma pontinha de malícia em seus olhos, sabia que eles comentariam depois que o namoradinho da Luana era até bonitinho, mas com aquele nome...
Cansou de ficar na cama pensando sobre essas coisas, e o sorriso do sonho já se fora. Era uma manhã quente, ela percebeu que estava um pouco enjoada. Como sempre, olhou-se no espelho que havia ao lado da cama e seus olhos estavam inchados. As mechas de cabelo desgrenhadas caíam sobre seu olho esquerdo. Sentiu-se bela, mesmo assim. O sol lá fora dava forças para que se vestisse, linda, perfumada, hoje tinha aula com ele, sabia que ele a convidaria para um café e quem sabe...
Ligou para Gérson. Combinaram de se encontrar no dia seguinte, ele a apanharia em casa. Pensou durante alguns minutos, tomando seu leite matutino, se iria de saia ou de vestido. Decidiu pela saia, uma minissaia preta que uma vez um amigo disse que a deixava irresistível. Sabia que as roupas tinham história, mas nunca pensava nisso. Luana não gostava do passado, vivia para o presente e para o futuro, o tempo em que seria plenamente feliz. Depois de ter vestido a minissaia, pôs o sutiã, sempre um desgosto. Ela quase não tinha seios e imaginava os decotes de suas amigas e o poder que eles exerciam; pensava, algo desesperada, em agarrá-los, enfiar a cabeça neles, o que a deixava profundamente frustrada. Nessa hora, saía de frente ao espelho, como que num ritual do qual estava excluída. Decidiu então pela camiseta branca de gola em V, que deixava entrever o sutiã e o bico dos seios. Sentiu-se desejada, a boa sensação do sonho voltou, prendeu o cabelo e saiu do quarto, deixando para trás o trabalho de História da Arte que copiou da amiga e enxertou de frases soltas colhidas na internet.