sábado, 28 de junho de 2008

Fábio Martini

Fábio Luiz Martini, 42 anos, professor de Antropologia em duas faculdades particulares. Solteiro, mora sozinho num apartamento de um quarto num bairro cult da cidade. Comprou o apartamento quando a região ainda era considerada um lixo. Gabava-se muito por isso.

O que tudo mundo sabia sobre o Martini é que ele era um escroque. Que ele, aliás, adorava essa palavra. Mas ele tinha a rara qualidade de ser um mau caráter simpático, do qual você não espera muita coisa, mas sempre acaba confiando. Amava a mãe, admirava o pai e tinha pela irmã um certo desprezo por ser uma "burguesinha acomodada".
Sempre tivera uma argúcia muito maior do que a inteligência, sabia como poucos aproveitar as oportunidades que a vida lhe apresentava. Foi assim que conseguiu concluir, na universidade mais conceituada do país, o curso de Ciências Sociais, que não o interessava nem um pouco, mas, sabia, era onde encontraria mais facilmente mulheres tolas, drogas, pessoas manipuláveis e, sobretudo, onde poderia saciar sua sede irrefreável por poder pessoal. Sua fantasia de adolescência era conseguir convencer alguém a se matar, quase conseguiu, uma vez.
Ao entrar na universidade, no segundo ano, ingressou num programa de iniciação científica em Antropologia Visual. Não acreditava em nada daquilo, mas era bom, sobretudo, em entender e articular as coisas nas quais não acreditava. E claro, fazia com tanta dedicação e afinco que acabava acreditando, só para poder ser mais verdadeiro para a orientadora e seus colegas.
A orientadora, uma mulher de uns quarenta e muitos, na época, viu nele uma oportunidade de crescer no departamento e logo o promoveu dentro do grupo, sua palavra era sempre a mais ouvida e respeitada, e mesmo ela umas duas ou três vezes voltou atrás em suas convicções por causa do Fábio.
Foi nessa época que aconteceu o envolvimento dele com a Natália, uma menina de segundo ano que se apaixonou perdidamente por ele. Não a achava nada atraente, mas gostosa. Era difícil se segurar quando ela, inadvertidamente, deixava roçar os seios no braço dele, sentia aquela mistura inconfundível de perfume e desejo saindo da respiração dela. Era esse, sempre, o sinal de cio, esse o verde de que ele precisava. Um dia roubou um beijo, e nesse mesmo dia treparam, ali mesmo, na sala de reunião. Ela terminou com o namorado, eles treparam mais umas quinze vezes e ele passou a desprezá-la, como sempre fazia. Um monstro, a própria encarnação do mal, nas palavras dela. Natália saiu do grupo, mal-falada, passou a se interessar por Política, um dia conto a história dela.
O mestrado nada teve de interessante. Defendeu tese sobre um grupo, um gueto da cidade do qual nem ele mesmo mais se lembrava. E foi pouco tempo depois que se deu o rompimento entre ele e a amada orientadora. Numa publicação de uma revista, ele, já mestre, se sentiu no direito de colocá-la como segunda autora. Ela, doutora, se indignou. Começaram as ironias, que logo descambaram para ofensas pessoais. Ele saiu para não mais voltar, arrependido por ter jogado fora uma carreira de glória na universidade pública. Sabia que era um embuste e que sua chance de se dar bem passava pelo tapinha nas costas que a orientadora sempre dera, ora por consolo, ora como empurrão para as entranhas burocráticas do meio acadêmico.
Então se lembrou dos amigos, sempre tivera muitos. O Cláudio tinha uns contatos naquela nova universidade – instaurava-se a moda das faculdades públicas virarem universidades, o que não passava de um projeto barato de reengenharia de empresas, marketing puro, ele sabia - e podia arrumar um emprego para ele. Podia, sim. Dentro de um mês ele era um professor de renome na instituição, carismático, com boa formação, apelo entre os jovens. A vida sorria novamente. Adorava dizer que se não tinha conseguido a glória de ser presidente, pelo menos era vereador mais votado de cidadezinha do interior, e era por lá mesmo que começaria, tudo novamente.
Foi também por essa época que se aventurou como professor de cursinho, dava aulas de Geografia com microfone, coisa que detestava. Mas era incrível o assédio que recebia. Era verdade, professor de cursinho come todas. Ele fez jus. Até que uma dessas todas começou a ameaçá-lo, a coisa ficou séria, juntou-se a isso uma proposta, ainda mais séria, de uma outra "universidade" e adeus cursinho. Pelo menos ele nunca se esqueceria da Marta, da Aninha, da Talita, da Débora, da Marina, ah a Marina...
E assim então encontramos o Martini, debruçado sobre o painel do carro, tentando enxergar o semáforo parado sobre a faixa de pedestres, dizendo palavrões para o trânsito da cidade. Ia chegar atrasado. Durante toda a sua vida fora pontual, o seu principal mérito, acreditava. Agora, chegaria atrasado, precisava pensar num caminho mais eficiente. Tudo era questão de achar outro meio de conseguir chegar lá a tempo. Essas faculdadezinhas de gente burra e rica sempre ficavam fora de mão.
Martini viu uma menina de vestido azul e lembrou-se da sua aluna, a Luana. Nunca tinha comido uma Luana e isso o excitava. Assim era o Martini, caprichoso, todos seus amigos sabiam. Bem como tudo o que está aqui, sempre foi público. Uns sabiam mais do que os outros, ele tinha o dom de dizer as coisas certas para as pessoas certas, e na maioria das vezes saía-se bem. Era como a exibição de sua superioridade "humana", sua exibição pública de poder. Sempre precisou de platéia. Sua única amiga era a Larissa, eles nunca tiveram nada. Só ela sabia de tudo.
Mas o que ninguém sabia, ninguém mesmo, era que o único amor da vida do Martini tinha sido o Luciano, quando tinha quinze anos. Humilhação, porque o Luciano gostava da Beatriz, a Bia cdf, o canhão da Bia quatro-olhos, sardenta, dentes tortos. Sempre que pensava nisso, lembrava da Quadrilha do Drummond, ah, como odiava poesia... Beatriz parecia ser o sonho de todos os poetas e ele, Martini, também nunca tinha comido uma Beatriz.

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